segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Resenha: ARQUIPÉLAGO GULAG

Neste livro-testemunho contundente, Aleksandr Soljenítsyn explica todas as etapas pelas quais os acontecimentos passaram para poder explicar o sistema de campos de concentração soviéticos, que a História ficou conhecendo como Gulag, e dos quais ele mesmo foi vítima: as primeiras detenções no começo dos anos 1920,  a criação e desenvolvimento do sistema de campos, seu ápice, seu declínio e, por fim, sua extinção, além de explicar as movimentações em massa durante os exílios forçados, boa parte de tudo isso tendo sido instaurado por Stálin e se mantido sob seu jugo de ferro.

Mas quem foi Aleksandr Soljenístyn? Ele formou-se pela Faculdade de Matemática e Física da Universidade de Rostov. Mais tarde, faria um curso por correspondência do Instituto de Filosofia, História e Literatura de Moscou. Em 1941, foi convocado pelo Exército Vermelho para lutar na Segunda Guerra Mundial. Em 1945, após ter sua correspondência interceptada pela censura, onde, segundo ela, havia termos pejorativos referindo-se a Stálin, como, por exemplo, “Chefão”, ele é preso e, depois de passar por alguns prisões, é condenado a 8 anos nos campos de trabalho forçado. Entre idas e vindas de mais prisões e campos, em 1953 ele é liberado e mandado para o exílio. Só em 1957 ele é liberado definitivamente do exílio. Muita coisa ainda aconteceria com ele até sua morte, em 2008, inclusive com respeito ao manuscrito deste livro.

A questão aqui é que, como pode-se notar, qualquer pessoa poderia ser presa e condenada sem julgamento por qualquer motivo, desde meras suspeitas de oposição ao regime, passando por algumas frases em cartas, até reais atividades de resistência. E as penas eram absurdas e desproporcionais, variando de 5 até 25 anos de trabalhos forçados, isso sem contar o exílio que poderia vir depois, independentemente de a pena haver sido cumprida.

O livro apresenta as condições horríveis de todo esse sistema prisional e de exílio, com toda a tortura, trabalhos forçados e condições inumanas de sobrevivência e de trabalho, ainda mais se levarmos em conta que a vasta maioria das vítimas não era de criminosos, mas de pessoas comuns que estavam cuidando de suas vidas, e que passaram a ser vigiadas e observadas em todo o país, e calharam de dizer ou fazer algo que poderia ser suspeito.

Além de sua própria experiência, Soljenítsyn contou com dezenas de depoimentos de pessoas que foram tão vítimas quanto ele desse regime.

Arquipélago Gulag é um daqueles livros que não são tão fáceis de ler, e por várias razões: o conteúdo em si, que se trata de um dos períodos mais sombrios e complexos da História; a mistura de estilos usados pelo autor, que passa sem preâmbulos da metáfora à realidade, da linguagem poética a observações históricas e vivências pessoais. Ademais, muitos trechos contêm alusões a pessoas, lugares e acontecimentos próprios do povo russo, que, quando vêm sem maiores explicações, exige um pouco de pesquisa adicional. Porém, o próprio livro contém recursos de apoio: a edição da Carambaia, que é a minha, traz um glossário de termos e pequenas notas biográficas ao final, além de um posfácio do professor Daniel Aarão dos Reis, que ajuda a entender o contexto e funciona como um bom arremate ao fim da leitura. Contamos ainda com uma linha do tempo da vida de Soljenítsyn, entremeada com acontecimentos-chave da URSS/Rússia.

Depois da abertura da União Soviética, muitos testemunhos e livros sobre a Revolução, os acontecimentos posteriores e o “sistema concentracionário” soviético vieram à tona, e Arquipélago Gulag certamente está entre um dos mais importantes.

Ficha:
Arquipélago Gulag
Autor: Aleksandr Soljenítsyn
Editora: Carambaia (2019)
702 páginas

ADENDO: Sugiro a leitura, em adição ao 'Arquipélago', do livro "A casa dos mortos - O exílio na Sibéria sob os Románov" (foto da capa abaixo), do historiador Daniel Beer, lançado pela Companhia das Letras. Trata-se justamente do sistema prisional e de exílio no período tsarista, que antecedeu a Revolução Russa.

sábado, 27 de maio de 2023

Resenha: THE MYSTERY OF JULIA EPISCOPA [O MISTÉRIO DE JULIA EPISCOPA]

AVISO: O livro comentado nesta resenha só está disponível em inglês; até o momento, não há uma edição traduzida no Brasil. 

Quando comecei a ler “The Mystery of Julia Episcopa” [O mistério de Julia Episcopa], tive a impressão de que era uma história superficial. Mas conforme a leitura progredia, percebi apenas que era uma narrativa simples e direta, que não afetava a história, mas que, como o nome já diz, continha um mistério com várias camadas que foram sendo “descascadas” até o fim. 

Duas arqueólogas pesquisadoras estão manuseando um antigo manuscrito nos arquivos do Vaticano quando se deparam com o que parece ser uma alteração forjada no nome de uma pessoa que poderia reacender debates sobre papéis de liderança na Igreja Católica. Elas descobrem que, por baixo do que até então se acreditava ser o nome do bispo que escreveu o manuscrito, Julius Episcopus, está o que parece ter sido escrito originalmente: Julia Episcopa. Apesar desse fato bem surpreendente em si, ainda há muitas coisas a serem reveladas. Mas a primeira e mais imediata questão é: se o nome de Julia foi alterado da forma feminina (Julia Episcopa) para a forma masculina (Julius Episcopus), teria esse documento sido escrito por uma bispa, numa instituição onde só homens são ordenados e exercem papel de liderança? 

Sem poder arcar com a pesquisa que seria necessária para responder a essa pergunta, Valentina e Erica, as pesquisadoras, recorrem à pessoa que poderia financiá-la e autorizá-la, uma pessoa que já ajudou em outras ocasiões: o misterioso e austero Cardeal Ricci. Mas há um problema: Ricci é extremamente conservador e absolutamente contra papéis de liderança para mulheres dentro da Igreja. Então, como poderia Valentina conseguir seu apoio sem revelar suas alarmantes suspeitas? 

Enquanto isso, o leitor não fica no escuro, descobrindo quem Julia Episcopa foi apenas no final da história. Visto que a narração não é linear, mas se alterna entre o 1º século DC e os nossos dias, vamos descobrindo, junto com as pesquisadoras e sua equipe, quem foi essa misteriosa mulher, cuja família pertencia à aristocracia romana, e como foi a sua vida, como era sua personalidade, sua família, e que eventos, por vezes trágicos, fizeram com que ela fosse parar no cerne de uma pesquisa e de trabalhos de escavação na região de Roma mais de 2 mil anos depois. 

“The Mystery of Julia Episcopa” já começa nos jogando no meio da erupção do vulcão Vesúvio, em 79 DC, com a protagonista fugindo desse desastre via marítima com suas duas filhas e alguns poucos pertences. É uma história instigante e emocionante, com reviravoltas e subtramas que nos fazem querer elucidar todos esses mistérios junto com os personagens, até a última página. Se você gosta de romances históricos, assim como eu, fica aqui a minha recomendação de um ótimo livro. 

ADENDO: Eu li “The Mystery of Julia Episcopa” no original, em inglês. É o primeiro volume das Crônicas do Vaticano [The Vatican Chronicles], e o segundo volume, “The Anonymous Scribe” [O escriba anônimo], também já está disponível em e-book na Amazon. Até o momento não há tradução disponível no Brasil.

Ficha:
The Mystery of Julia Episcopa
Autores: John I. Rigoli e Diane Cummings
Série: The Vatican Chronicles
Edição: Amazon Digital Services (EUA, 2021)